Financeirização da moradia via fundos de investimento imobiliário em metrópoles brasileiras. - Vol. 49 Núm. 148, Septiembre 2023 - EURE-Revista Latinoamericana de Estudios Urbanos Regionales - Libros y Revistas - VLEX 945361444

Financeirização da moradia via fundos de investimento imobiliário em metrópoles brasileiras.

AutorKalinoski, Rafael

Introdução

A financeirização é um conceito extensivamente explorado na teoria, normalmente entendido como a influência crescente de intenções, instituições, mercados e agentes financeiros na operação das economias domésticas e internacional (August, 2020; Epstein, 2005; Fernandez & Aalbers, 2016). No fenômeno urbano, a financeirização representa o reordenamento escalar do processo de urbanização com agentes e interesses locais e globais justapostos no espaço (Sanfelici, 2013b). Entretanto, apesar de teorizada, a financeirização nem sempre é explicada a partir de eventos cotidianos que permitam compreender a conexão entre mecanismos financeiros complexos e o que se vê da cidade desde o nível da rua (Crosby & Henneberry, 2016).

No contexto em que a urbanização é um fenômeno sob a influência do capital portador de juros (Panizzi, 2020; Sanfelici, 2013a), é importante explorar as conexões entre o mercado desterritorializado de capitais e o produto imobiliário, a "célula" do espaço urbano. Em um primeiro momento, a trajetória dos Fundos de Investimento Imobiliário (FIIS) no Brasil foi voltada para lajes coorporativas, galpões logísticos e shoppings (Sanfelici, 2013a). O amadurecimento desses segmentos levou os FIIS à exploração do mercado residencial, especialmente de aluguéis, por volta de 2019, momento que parecia ser a saída de uma crise econômica aguda. À época, não era concebível que uma pandemia dificultaria ainda mais a retomada econômica.

A despeito do avanço das ciências sociais na pesquisa sobre financeirização da residência ocupada pelo próprio dono (Fields & Uffer, 2016), a pesquisa ainda não deu conta de entender esse fenômeno no mercado de aluguéis. Os autores também chamam atenção para o fato de que boa parte da pesquisa sobre o assunto foca nos Estados Unidos, e desse contexto expandiram a análise para o eixo EuA-Europa. Permanece, ainda, o desafio de compreender o avanço dos FIIS sobre o aluguel residencial urbano no contexto de capitalismo periférico da América Latina. Neste artigo, investigamos especificamente o caso brasileiro.

Portanto, o objetivo deste artigo é identificar características e estratégias do avanço dos FIIS sobre o segmento residencial do mercado imobiliário e entender as relações entre os agentes envolvidos no processo e sua conexão com o conceito de financeirização. A inclusão do produto imobiliário residencial no rol de atuação dos FIIS adiciona um novo componente aos estudos brasileiros sobre financeirização e denota que se trata de um processo em constante complexificação. Após revisão de literatura das categorias conceituais às quais este artigo oferece contribuições, faz-se uma aproximação empírica por meio da retomada da trajetória dos FIIS no país. Na sequência, relata-se os procedimentos metodológicos do estudo empírico, seguidos dos resultados e das conclusões.

O capital portador de juros no espaço urbano

Em aderência ao entendimento de que a articulação entre o capitalismo e a estrutura do espaço urbano formam um regime urbano (Abramo, 1995), entende-se que a emergência dos FIIS residenciais é mais uma "fase particular" da relação entre o capital portador de juros e o espaço urbano. Se antes os interesses financeiros permeavam o mercado imobiliário por meio do capital investido nas construtoras e incorporadoras, agora adiciona-se a isso a lógica de intermediação do aluguel e da operação do condomínio dentro de uma estrutura de FIIS.

Em um primeiro momento, a pesquisa da financeirização do espaço urbano levantou mais perguntas que respostas. Agora, a soma de novos recortes empíricos começa a indicar o enfrentamento das questões centrais. O entendimento da financeirização da habitação e da importância da habitação para a própria financeirização (Fernandez & Aalbers, 2016) são questões que podem ser teorizadas a partir do estudo da emergência dos FIIS residenciais no Brasil. O processo de financeirização imobiliária mobiliza diferentes escalas, agentes, práticas e institucionalidades na transformação das economias, das empresas e da experimentação quotidiana da cidade (Klink & Souza, 2017). A essa mobilização refere-se nesse texto como engenharia financeira. Portanto, propõe-se que a engenharia financeira por trás de novas práticas de exploração do espaço pode ser mais bem compreendida e conceituada se abordada como um sistema sociotécnico de mercado imobiliário.

Esses sistemas explicam relações entre infraestruturas urbanas constituídas, atividades econômicas, e estruturas financeiras que contribuem para o seu financiamento. Segundo Halbert (2018), os sistemas sociotécnicos coletam, transferem e distribuem capital em elementos que constituem o ambiente urbano construído. Essa perspectiva de análise permite um debate mais amplo sobre o lugar dos circuitos de financiamento nas dinâmicas socioespaciais e sociopolíticas dos espaços urbanos, e permite compreender a estrutura dos grupos econômicos que, em última instância, produzem o espaço urbano financeirizado. O autor argumenta que o interesse da análise das infraestruturas financeiras e mediações sociotécnicas que contribuem para a sua implementação é duplo para os estudos urbanos, pois explicita sua origem e o seu funcionamento.

Esses sistemas, portanto, conformam em algo mais amplo, ao que se denomina aqui de novo modelo de governança imobiliária. Esse novo modelo tem duas características que serão discutidas novamente após os resultados empíricos. A primeira é que o interesse financeiro está intrinsicamente ligado à localização do produto imobiliário no espaço urbano. Por localização, entende-se o conjunto de atributos de infraestrutura urbana, como transportes, ruas e parques, que tornam um recorte urbano preferível a outro para se viver. Os resultados indicarão que os FIIS têm suas estratégias espaciais apoiadas em desenvolver projetos articulados a equipamentos públicos, como estações de metrô ou importantes avenidas, o que denota estreita relação entre obras financiadas pelo Fundo Público e as estratégias financeiro- imobiliárias. A segunda característica dessa nova governança é que o produto imobiliário assume dois discursos divergentes em sua comercialização. Para o morador, o discurso tenta desconstruir o sonho da casa própria como maior ambição de inserção social. Para o comprador-investidor, a visão de futuro próspero permanece, mas agora apoiada na lógica de ser o detentor de imóveis ou cotas de Flls como garantia de renda futura.

Também há articulação entre esses novos produtos imobiliários e a legislação urbana municipal. No caso de São Paulo, por exemplo, os Eixos de Estruturação da Transformação Urbana (EETUS) são o cenário de inovações na articulação entre mercado imobiliário e mercado de capitais, denotando que a governança no imobiliário depende tanto de variáveis externas--localização das intervenções e decisões do Poder Público--quanto internas--decisões sobre as peculiaridades de cada FII. Na próxima seção, será explorada a trajetória da instituição dos Fils no Brasil antes de iniciar a apresentação do estudo empírico.

Da laje comercial ao cubículo residencial de alto padrão

Revisitar a trajetória da instituição dos FIIS no Brasil foi o ponto de partida escolhido para contextualizar como o texto aporta uma leitura brasileira de um fenômeno que já é compreendido no contexto do norte global. O estudo de August (2020), por exemplo, aponta que, no Canadá, o percentual de propriedades controladas por real estate investment trusts (REITS, equivalentes aos Fils no Brasil) é maior em províncias onde não há regulação de aluguéis, ou onde a regulação é fraca. Adicionalmente, o trabalho de Ioannou e Wójcik (2021) aponta que há uma tendência de que estruturas financeiras sejam distribuídas de forma desigual dentro de um mesmo país, o que será verificado no estudo empírico desse trabalho quando constatado que os FIIS residenciais se concentram apenas nas regiões Sudeste e Sul do Brasil, com destaque para a cidade de São Paulo. A novidade do presente artigo consiste no entendimento da recente inserção da instituição dos Fiis em um novo segmento, o mercado residencial de aluguéis.

Os FIIS foram instituídos no Brasil em 1993 após uma década de crise econômica e hiperinflação. No contexto internacional, o pano de fundo era o avanço de políticas de privatização, liberalização do comércio internacional e desregulamentação de transações financeiras internacionais. Naquele momento, a instituição dos Fiis estava em linha com as políticas do governo Collor (1990-1993) devido ao alegado potencial de fortalecer o mercado financeiro brasileiro e atrair investimento estrangeiro (Sanfelici, 2017; Sanfelici & Halbert, 2019).

Definidos pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) como "uma comunhão de recursos captados por meio do sistema de distribuição de valores mobiliários e destinados à aplicação em empreendimentos imobiliários", os Fiis possuem uma instituição administradora e uma gestora. A primeira realiza o trabalho burocrático, enquanto a segunda define estratégias e identifica oportunidades de negócios na interface com o mercado imobiliário.

Fundos de investimento podem ser organizados sob forma de condomínio aberto ou fechado. Nos fundos abertos, os cotistas podem solicitar o resgate de seu investimento a qualquer tempo, ao passo que nos fundos fechados precisam esperar o prazo determinado de encerramento. Fiis são sempre constituídos sob forma de condomínio fechado e têm, em sua maioria, duração indeterminada. Entretanto, isso não compromete a liquidez dos investimentos, pois as cotas podem ser negociadas no mercado secundário. São a oferta e a demanda pelos papéis no mercado secundário que determinarão o preço de face das cotas. Para o investidor, o FII é de médio risco, pois o preço das cotas está sujeito às flutuações de negociações em bolsa. Entretanto, os bens e direitos da carteira de um fundo não integram o patrimônio nem do administrador, nem do gestor, dando garantias ao cotista em caso de...

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