Democracia e segregacao urbana: reflexoes sobre a relacao entre cidade e cidadania na sociedade brasileira. - Vol. 29 Núm. 88, Diciembre 2003 - EURE-Revista Latinoamericana de Estudios Urbanos Regionales - Libros y Revistas - VLEX 56588869

Democracia e segregacao urbana: reflexoes sobre a relacao entre cidade e cidadania na sociedade brasileira.

Autorde Queiroz Ribeiro, Luiz Cesar

Abstract

Traditionally, cities have been thought like places of modernity and democracy; nevertheless, contemporary debate about urban impacts of economic transformations is marked by the hypothesis of the emergency of a new socio-spatial order, in the which cities fulfill an exactly inverse paper, with the sprouting of a dualized social structure and a fragmented spatial organization. In this article we examine some aspects of this hypothesis, according to our findings of changes and continuities of socio-spatial and institucional nature in Brazilian metropolis. Using a theoretical frame that articulates democracy with its social conditions and institutions, we finally discuss the effects that socio-spatial transformations in Brazilian cities may have over the effectiveness of citizenship rights and democratic dynamics.

Keywords: citizenship, democracy, urban segregation, Brazil.

Resumo

Tradicionalmente, a cidade tem sido pensada como o lugar da modernidade e da democracia; não obstante, o debate contemporãneo sobre os impactos nas grandes cidades das transformações econômicas é marcado pela hipótese da emergência de uma nova ordem socioespacial na qual a cidade cumpre um papel exatamente inverso, com o surgimento de uma estrutura social dualizada e uma organização espacial fragmentada. Examinamos neste artigo alguns aspectos desta hipótese, à luz dos nossos resultados de pesquisa sobre as mudanças e continuidades da ordem socioespacial e institucional da metrópole brasileira. Utilizando um quadro teórico que articula a democracia com as suas condições sociais e institucionais, empreendemos a discussão dos possíveis impactos das transformações na ordem socioespacial das cidades brasileiras sobre a efetivação dos direitos de cidadania e da dinâmica democrática.

Palavras-chave: cidadania, democracia, segregação urbana, Brasil.

Os cidadãos urbanos usurparam o direito de dissolver os laços da dominação senhorial --e esta foi a grande inovação, de fato, a inovação revolucionária das cidades medievais do Ocidente em face de todas as outras- a quebra do direito senhorial. Nas cidades centro e norte-européias originou-se o conhecido dito: "o ar da cidade liberta".

Max Weber.

  1. Introdução

    Desde Marx, Weber, Tönnies, Sombart e Simmel, a cidade teta sido pensada como o lugar da modernidade e da democracia, ern razão do seu papel na autonomização do indivíduo das amarras que o ligavam à ordem estamental, na formação das classes e na instituição dos direitos políticos e sociais. O debate contemporâneo sobre os impactos nas grandes cidades das transformações econômicas (globalização e re-estruturação produtiva), no entanto, é marcado pela hipótese da emergência de uma nova ordem socioespacial na qual a cidade cumpre um papel exatamente inverso, com o surgimento de uma estrutura social dualizada entre ricos e pobres, uma organização espacial fragmentada e uma sociedade política semelhante ao ancien régime, onde as elites passam a controlar de maneira exclusivista a ordem poliárquica deformada, abandonando ao hobbesianismo os deserdados da nova ordem do mercado.

    Examinamos neste artigo alguns aspectos desta hipótese, à luz dos nossos resultados de pesquisa sobre as mudanças e continuidades da ordem socioespacial e institucional da metrópole brasileira. Propomos a reflexão sobre os impactos institucionais da possível mudança do modelo socioespacial da "cidade cordial", caracterizada por mecanismos dissimuladores das distâncias sociais e pela vigência de mitos integradores, substituído pelo da "cidade partida" no qual a segregação, a agregação seletiva e a desagregação da vida política são sinalizadas por parte da literatura como os princípios de sociabilidade que passam a vigorar na cidade brasileira.

    Antes, julgamos necessário construir um quadro de referência que nos possibilite refletir sobre o funcionamento das regras do regime democrático e o exercício dos direitos de cidadania em uma sociedade reconhecidamente marcada por fortes e históricas desigualdades sociais. Com efeito, a Constituição de 1988 pode ser considerada não apenas o marco da re-democratização brasileira, mas também a instituição das bases normativas de um regime político no qual a população é amplamente conclamada a ter um papel ativo na gestão pública, especialmente no plano local. Vários autores brasileiros têm se indagado, porém, sobre os limites para a consolidação dessa nova ordem democrática decorrentes dos efeitos das grandes distâncias sociais que separam as classes, as regiões, as cidades e até mesmo os bairros, em mundos contrastantes em termos de condições e qualidade de vida. Será utilizando esse quadro teórico que articula a democracia com as suas condições sociais e institucionais que empreendemos, na segunda parte desse ensaio, a discussão dos possíveis impactos das transformações na ordem socioespacial das cidades brasileiras sobre a efetivação dos direitos de cidadania e da dinâmica democrática.

  2. Democracia e cidadania

    Tomamos como ponto de partida a concepção de O'Donnell (1999) na qual um regime democrático --ou poliárquico, na acepção de Dahl (1997)- tem duas dimensóes fundamentais (O'Donnell, 1999): primeiro, é um regime representativo de governo, em que o único mecanismo de acesso às principais posições de governo ocorre por meio de eleições competitivas, resultado da aposta institucionalizada, universalista e includente que faz uma sociedade, implicando na garantia a todos os indivíduos dos direitos de votar e de ser votado. Segundo, é um regime em que o sistema legal garante as liberdades e direitos considerados fundamentais ao exercício da cidadania política.

    Essa definição implica, para os autores que a adotam, que para um regime ser democrático não basta a realização de eleições, elas devem ser regulares, institucionalizadas e competitivas (1). Ao mesmo tempo, a definição tem o mérito de afirmar a necessidade de um conjunto de liberdades para garantir a realização de eleições livres, competitivas e isentas. O'Donnell (1999) reconhece que essas liberdades apresentam diversos problemas para a teoria democrática, pois a determinação de quais são as liberdades realmente necessárias não encontraria bases teóricas suficientemente firmes e claras, já que se baseiam fundamentalmente em juizos de valor indutivos (2). Mas apesar dessas dificuldades e dos elementos de imprecisão que circundam a questão, o autor entende que a melhor perspectiva não é "ignorá-las ou tentar fixar artificialmente os limites internos e externos dessas liberdades", mas, ao contrário, "estudar teoricamente as razões e implicações desse enigma" (O'Donnell, 1999: 594).

    Daí a preocupado do autor em estabelecer uma definição que não se restringe ao foco da institucionalização da mecânica democrática, ou seja, ao acatamento das regras democráticas, e que busque superar a dicotomia produzida pela literatura corrente que opõe as visões institucional e substantiva da democracia. Em O'Donnell (1999), estão intrinsecamente vinculados e são inseparáveis esses dois aspectos, a institucionalização do regime e as condições de sua efetividade, traduzidas pelas liberdades fundamentais. Estas, conforme verificamos, asseguram a cidadania política, o que estabelece um vínculo indissociável entre a visão substantiva da democracia e a análise dos processos concretos de constituição da cidadania em cada realidade histórica.

    Os direitos de votar e de ser votado, expressos em um sistema legal, definem o que O'Donnnell (1999) denomina como agency, concebido como a condição da existência do indivíduo "dotado de razão prática, ou seja, que faz uso de sua capacidade cognitiva e motivacional para tomar decisões racionais em termos de sua situação e de seus objetivos, e dos quais, salvo conclusiva em contrário, é considerado o melhor juiz" (O'Donnell, 1999: 603). A constituição da agency também é produto da aposta da sociedade que mencionamos anteriormente, já que implica na institucionalização de "uma visão moral do indivíduo como ser autônomo, racional e responsável" (615), ou seja, que concebe o indivíduo como "um sujeito jurídico dotado de direitos civis subjetivos" (603). Assim, "as regras que estabelecem a cidadania política são parte essencial de um sistema legal cuja premissa é a concepção de agency de um sujeito jurídico" (615), o que importa dizer que a cidadania política faz parte dos direitos civis, que historicamente a antecederam, como pode ser confirmado pela análise histórica dos países de democracia originária, expresso na obra de Marshall (1967). O vínculo entre a cidadania civil e a cidadania política também é defendida por Habermas (1997) que argumenta sobre a "dependência mútua entre as liberdades de ação do sujeito de direito privado e a autonomia pública do cidadão" (314), ou em outros termos, "o nexo interno entre 'direitos humanos' e soberania popular" (316), o que nos remete aos graus de articulação entre a esfera dos direitos civis (Estado de Direito) e a esfera dos direitos políticos e dos procedimentos democráticos (Estado Democrático).

    A concepção de agency e a constatação do nexo orgânico e histórico entre direitos políticos e civis nos possibilitam estabelecer um vínculo teórico indissociável entre as condições de efetividade da democracia e as desigualdades sociais existentes em uma dada sociedade. Ou seja, a impossibilidade da existência real de direitos de cidadania sem o acesso e a garantia de direitos fundamentais à existência humana, na medida que põem em risco a própria possibilidade de escolhas racionais fundadas na autonomia e liberdade de ação. O'Donnell (1999) destaca duas ameaças a serem enfrentadas pela teoria democrática: o problema da miséria e o problema do constante temor à violencia, porque ambos "impedem a existência ou o exercício de aspectos básicos da agency, inclusive a disponibilidade de opções mínimas compatíveis com ela" (625).

    Dessa concepção, decorrem três questões fundamentais para a nossa discussão. Primeiro...

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