Planejamento reformista-progressista, instrumentos urbanisticos e a (re) producao do espaco em tempo de neoliberalizacao. Uma exploracao a partir do caso de Sao Bernardo do Campo (Sao Paulo). - Vol. 46 Núm. 137, Enero 2020 - EURE-Revista Latinoamericana de Estudios Urbanos Regionales - Libros y Revistas - VLEX 870569950

Planejamento reformista-progressista, instrumentos urbanisticos e a (re) producao do espaco em tempo de neoliberalizacao. Uma exploracao a partir do caso de Sao Bernardo do Campo (Sao Paulo).

AutorCabral de Souza, Claudia-Virginia
CargoTexto en portugues

Introducao

Nos ultimos anos multiplicaram-se os debates sobre a neoliberalizacao dos espacos urbanos via grandes projetos urbanos, parcerias publico-privadas e outros mecanismos de empresariamento urbano, reescalonamento e reestruturacao do Estado. A discussao recebeu contribuicoes principalmente dos campos da economia politica e da geografia critica acerca das relacoes imbricadas entre a reestruturacao economica global, o esvaziamento do keynesianismo espacial--marcado por um projeto redistributivo de coesao socio-espacial, sob a coordenacao do Estado nacional--e a disseminacao de estrategias de competividade urbana (Brenner, 2004; Harvey, 1989). Essa literatura proporcionou chaves analiticas para lancar luz sobre as contradicoes urbanas na fase atual do capitalismo, como, por exemplo, as relacoes entre Estado, escala e espaco na producao de segregacao social nas cidades dos paises centrais, em contextos de esvaziamento do regime de bem-estar social.

Apesar desses avancos, a pesquisa sobre neoliberalizacao urbana apresenta limites para dialogar com a complexidade e diversidade das dinamicas territoriais e sociais que marcam as cidades no seculo XXI. Cabe primeiramente ressaltar que ha tempo os estudos pos-coloniais e pos-estruturalistas expressaram duvidas sobre a aplicabilidade de teorias gerais, normalmente elaboradas a partir do contexto dos paises centrais (Robinson, 2010). Os poucos trabalhos no campo da economia politica sobre a America Latina em geral, e o Brasil em particular, mostram que as especificidades geograficas e historicas das relacoes entre o nacional-desenvolvimentismo e as cidades da regiao nao apresentam uma analogia clara com o esvaziamento do keynesianismo espacial nos paises centrais (Klink & Souza, 2018). Mas o ponto que interessa ressaltar neste artigo e que a geografia critica e a economia politica, areas de conhecimento que mais contribuiram para as pesquisas sobre neoliberalizacao urbana, apresentam leituras abstratas sobre a escalaridade e espacialidade do Estado, em geral, e sobre sua relacao com a questao urbana, em particular. Encontram-se poucas abordagens sobre como as escalas sao preenchidas (ou esvaziadas) pelos agentes a partir de suas percepcoes, narrativas e estrategias em relacao aos instrumentos de politica urbana. Curiosamente, embora o campo do planejamento urbano-regional esteja em posicao privilegiada para elaborar e complementar as analises sobre neoliberalizacao urbana, ha pouco dialogo entre as vertentes, o que poderia proporcionar insights sobre o papel do planejamento e dos instrumentos urbanisticos no processo de reestruturacao do Estado em tempos de neoliberalizacao.

Cabe tambem destacar que as pesquisas sobre os Grandes Projetos Urbanos (GPUS) e o empresariamento urbano representam apenas uma faceta dessa discussao, considerando que a administracao local nao representa um bloco monolitico e e objeto de diversas pressoes sociais. Mais particularmente, movimentos sociais, proprietarios de terra, empreendedores imobiliarios e empresarios industriais, entre outros, elaboram estrategias para influir sobre o desenho e a implementacao da politica urbana. Na pratica, isso significa que o resultado da politica urbana nao pode ser deduzido, ex ante, do carater supostamente progressista-redistributivo ou neoliberal-mercantil dos proprios instrumentos urbanisticos.

No entanto, ha poucos estudos que articulam a investigacao mais detalhada dos instrumentos urbanisticos a uma leitura analitica dos projetos, estrategias e percepcoes dos agentes publicos e privados que procuram influenciar o desenho e a implementacao da politica urbana e a atuacao territorial do Estado em escala local (Brajato, 2015). Uma abordagem nessa linha ab riria uma perspectiva de analise concreta acerca da dinamica e politica urbanas em meio a processos de neoliberalizacao. Autores como Robinson (2010), por exemplo, argumentam que as cidades frequentemente "inventam" as suas proprias estrategias e politicas. A teoria do planejamento urbano-regional pode iluminar a analise de como, e sob que circunstancias, as cidades fazem isso a partir das percepcoes e estrategias adotadas pelos agentes no sentido de influenciar o desenho e execucao dos instrumentos urbanisticos, frequentemente distanciando os eixos da politica urbana "efetivamente existente" das suas premissas iniciais.

Nesse sentido, este artigo explora como as pesquisas sobre neoliberalizacao urbana podem ser enriquecidas a partir de uma mediacao com a teoria do planejamento urbano e de uma leitura acerca das percepcoes e estrategias adotadas pelos agentes em relacao aos instrumentos urbanisticos. Faremos isso a partir de um estudo de caso sobre politica urbana em Sao Bernardo do Campo, cidade brasileira localizada na Regiao Metropolitana de Sao Paulo (RMSP). O caso brasileiro e um exemplo emblematico da complexidade dos entrelacamentos de neoliberalizacao, reestruturacao e reescalonamento do nacional-desenvolvimentismo e da trajetoria contraditoria dos espacos urbanos e metropolitanos.

A escolha de Sao Bernardo do Campo (SBC) como estudo de caso sobre a aplicacao de um conjunto de instrumentos justifica-se pelo papel central que a cidade, a industria e as liderancas sociais--que tem seu expoente no ex-presidente Luis Inacio Lula da Silva (Lula)--desempenharam no projeto desenvolvimentista. De certa forma, compreender a trajetoria da cidade e os limites e potencialidades da aplicacao dos instrumentos urbanisticos regulamentados pelo Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257, 2001) no pos-democratizacao do pais gera insights acerca do proprio esgotamento do projeto social-desenvolvimentista no Brasil, o que presenciamos no periodo pos-2015. O estudo de caso baseou-se em pesquisa documental e, tambem, em dados secundarios e entrevistas semiestruturadas com o ex-prefeito Luiz Marinho, gestores municipais, movimentos sociais, empresarios e agentes do setor imobiliario.

Apos esta introducao, o artigo estrutura-se em quatro secoes complementares. Na primeira, discorremos sobre o Estatuto da Cidade e os instrumentos de politica urbana. Na segunda, recuperamos, sinteticamente, a trajetoria do desenvolvimento local, enquanto na terceira descrevemos o desenho e implementacao da politica urbana na gestao do ex-prefeito Luiz Marinho. Na quarta secao, com base em entrevistas, apresentamos a percepcao dos atores e as estrategias efetivas adotadas pelos mesmos em relacao aos instrumentos urbanisticos. Concluimos o artigo com os principais resultados do estudo de caso, incluindo elementos para a elaboracao de uma agenda de pesquisa sobre neoliberalizacao urbana com relevancia para os paises emergentes.

Estatuto da Cidade e instrumentos de politica urbana

A decada de 1980 foi marcada pelo processo de redemocratizacao do pais. Em meio a uma mobilizacao social inedita, os setores sociais progressistas relacionados a questao urbana apresentaram a Assembleia Nacional Constituinte uma Emenda Popular pela Reforma Urbana, obtendo, como resultado, o reconhecimento da funcao social da propriedade e do direito de posse dos moradores de favelas e periferias urbanas pela Constituicao do Brasil (1988).

A mesma decada deu lugar a reestruturacao produtiva e a disputa entre dois projetos de desenvolvimento concorrentes--de um lado, a preservacao e institucionalizacao de elementos do desenvolvimentismo, com abertura para processos participativos, e, de outro, a neoliberalizacao do Estado, que acabou por impor-se na decada de 1990, apesar da conquista de direitos assegurada pela carta constitucional. Os anos 90 ficaram marcados pela reestruturacao e pelo reescalonamento do Estado. O processo de neoliberalizacao desenvolveu-se por meio de movimentos instaveis e contraditorios de roll back--momento destrutivo, quando o Estado desenvolvimentista foi atacado de varias formas--e roll out, um momento criativo e proativo de (re) regulamentacao (Souza, 2013). O roll back do Estado desenvolvimentista na decada de 1990 levou a ampliacao da crise social nas metropoles, o que contribuiu para o roll out do desenvolvimentismo a partir de 2006, o que nao significou um rompimento radical com a trajetoria de neoliberalizacao, mas ampliou os instrumentos redistributivos do Estado e priorizou o mercado interno, influenciando a distribuicao de renda e a alocacao de investimentos (Bastos, 2012). Apesar dos esforcos neoliberalizantes dos anos 90, a redemocratizacao e a descentralizacao haviam institucionalizado a agenda da reforma urbana, por meio do Estatuto da Cidade (EC), que, aprovado em 2001, encontrou no governo Lula um ambiente favoravel a sua implementacao.

O EC regulamentou a Constituicao do Brasil (1988) e instituiu a nova politica urbana nacional, fundada nos principios da funcao social da cidade e da propriedade, direito a moradia e gestao participativa, os quais deveriam nortear a elaboracao e implementacao dos planos diretores locais. Uma serie de instrumentos urbanisticos redistributivos foram previstos e regulados pelo EC com o intuito de que os governos locais pudessem intervir nos mercados de terra, visando os interesses da coletividade. E o caso de instrumentos como as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) e o Parcelamento, Edificacao ou Utilizacao Compulsorios (PEUC) e seus sucedaneos legais--o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) Progressivo no Tempo--e a desapropriacao com pagamento em titulos da divida publica. Nesse sentido, pode-se dizer que o EC reflete o compromisso entre uma praxis mais radical, pautada pela queixa e reivindicacao de acesso a terra e a cidade, como espaco coletivo de geracao e apropriacao de riqueza, e uma pratica de planejamento urbano estruturada nos pilares da racionalidade comunicativa, isto e, no rompimento com o planejamento tecnoburocratico e na assimilacao do papel estrategico da participacao popular (Healey, 2003) e da funcao social da propriedade urbana (Law-Yone, 2007).

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