Financeirizacao e a producao do espaco urbano no Brasil: uma contribuicao ao debate. - Vol. 39 Núm. 118, Septiembre - Septiembre 2013 - EURE-Revista Latinoamericana de Estudios Urbanos Regionales - Libros y Revistas - VLEX 635838853

Financeirizacao e a producao do espaco urbano no Brasil: uma contribuicao ao debate.

AutorSanfelici, Daniel
CargoArtículo en portugués

RESUMO | Nos últimos dez anos no Brasil, o volume de contratações de financiamento habitacional cresceu rapidamente. Paralelamente a esse crescimento nas contratações, há uma clara tendência ao crescimento na emissão de papéis financeiros com lastro na atividade imobiliária, como Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRIs) e cotas de fundos de investimento imobiliário. Tendo em vista esse contexto, em que canais financeirizados de investimento imobiliário ganham maior centralidade e após uma breve revisão bibliográfica, o artigo pretende olhar para esse processo colocando em destaque como a relação entre as grandes incorporadoras e o mercado de capitais transformou os negócios imobiliários no Brasil. Particularmente, atenta-se para o fato de que a articulação com as finanças induziu a um processo de dispersão territorial e de ampliação da escala do investimento. O artigo conclui sugerindo que a financeirização representa um reordenamento escalar do processo de urbanização.

PALAVRAS CHAVE | reestruturação econômica, mercado imobiliário, reescalamento.

Over the past ten years, the number of mortgage loan originations has grown rapidly in Brazil. At the same time, there is a clear trend toward the issuing of financial instruments backed by property revenues, such as the Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRIs) and shares in real estate investment trusts. Against the backdrop of this growing centrality of financialized channels for property investment, after a brief theoretical discussion, we have looked at this trend by focusing on how the relationship between large developers and capital markets has transformed the property sector in Brazil. We have noted, particularly, that the connection with financial markets has encouraged strategies of territorial expansion and growing scale of investment among large developers. The paper concludes by suggesting that financialization in property markets amounts to a rescaling of the urban process.

KEY WORDS | economic restructuring, real estate market, rescaling.

Introdução

A persistência de um quadro conjuntural de severa recessão nos países desenvolvidos, com possíveis desdobramentos globais, mesmo passados quatro anos do desencadeamento da crise subprime nos Estados Unidos, coloca à mostra a fragilidade de um crescimento econômico centrado na acumulação de capital na esfera financeira. Os níveis alarmantes de envididamento dos Estados e das famílias em inúmeros países--uma manifestação da hiperextensão do sistema de crédito em relação às possibilidades concretas de acumulação--poderiam sugerir a dissolução de uma configuração peculiar ao capitalismo dos últimos vinte a trinta anos. A esse fator, soma-se uma conscientização maior e em nível global--ilustrada, por exemplo, pelo movimento Occupy Wall Street, entre outros--a respeito das consequências nefastas da hipertrofia da esfera financeira sobre aspectos como a distribuição de renda e de riqueza e o acesso à moradia. No entanto, o que se assisti é a uma reiteração de medidas em vários países que, longe de frear o ímpeto expansivo das finanças, reforçam um padrão de acumulação cujo desdobramento inevitável haveria de ser a crise de 2008.

Nesse contexto, o interesse em desvendar as repercussões da financeirização sobre dimensões variadas da vida social vem crescendo consideravelmente nas ciências sociais. Há um reconhecimento, cada vez maior, de que os fenômenos atinentes às finanças não se limitariam às altas esferas de especulação internacional com moedas e papéis, possuindo também importantes ramificações na prática cotidiana das sociedades. A investigação acerca dos elos entre financeirização e a produção do espaço urbano aparece, nessas circunstâncias, como um campo importante de pesquisa que vem se desenvolvendo mais fortemente nos últimos anos. Esse artigo pretende contribuir com pesquisas já existentes nesse campo, refletindo acerca da relação entre financeirização e a produção do espaço urbano no Brasil atual. A elaboração do artigo apóia-se, fundamentalmente, em uma pesquisa empírica ainda em curso, que focaliza a trajetória recente de um grupo de grandes incorporadoras/ construtoras brasileiras após a abertura de capital, com o propósito de avaliar suas implicações sobre o processo de urbanização no Brasil.

A primeira parte desse artigo dedica-se a uma breve discussão teórica acerca dos fundamentos sociais e econômicos da financeirização. Ressalta-se, aqui, que a financeirização não pode ser compreendida simplesmente como uma dominação do setor financeiro sobre o setor produtivo, sob o risco de simplificar um fenômeno que possui uma complexidade apreciável. Em vez de postular uma exterioridade entre o setor financeiro e o restante da economia, na qual o primeiro apareceria como a origem do fenômeno de financeirização, seria necessário, antes, reconhecer que um dos traços centrais da financeirização reside na crescente penetração de práticas financeirizadas por rodas as relações econômicas e sociais relevantes do capitalismo atual. A urbanização pode, então, ser compreendida como um fenômeno que se encontra, crescentemente, sob a influência do capital portador de juros.

Na segunda parte, coloca-se em destaque alguns dos desdobramentos do processo de financeirização para pensar as metrópoles brasileiras hoje. Embora se reconheça que se trata, ainda, de um fenômeno incipiente no Brasil, o trabalho procura examinar a presença de interesses financeiros na produção do espaço das metrópoles, enfocando as mudanças de estratégia das grandes incorporadoras/ construtoras após a abertura de capital em 2006/7, que permitiu a participação de grandes fundos de aplicação financeira na composição acionária dessas empresas. Segundo o argumento desenvolvido, não apenas a abertura de capital potencializou a extração de rendas urbanas nas maiores metrópoles do Brasil, como também produziu efeitos visíveis sobre a estruturação das cidades.

As múltiplas dimensões da financeirização

O sistema de crédito é uma peça-chave na arquitetura da acumulação capitalista. Ao adiantar recursos ociosos àqueles que não dispõem desses recursos em determinado ponto do tempo, o sistema de crédito permite uma compatibilização entre diferentes temporalidades do processo de acumulação e, de tal forma, contribui para acelerar o tempo de rotação dos capitais e diminui os custos relacionados com a circulação (Itoh & Lapavitsas, 1999; Harvey, 1999). Sua presença é, ademais, indispensável em função de seu papel coordenador, ou seja, o sistema de crédito é capaz de coletar dinheiro ocioso de todos os poupadores da sociedade e alocar esse dinheiro para as atividades que apresentam maior potencial de produzir mais-valia, induzindo nesse movimento, uma equalização das taxas de lucro entre setores e regiões. Nesse sentido, é válido afirmar que o capitalismo não poderia existir sem um sistema de crédito cada vez mais sofisticado para atender suas necessidades de reprodução.

No entanto, quando se fala em financeirização não está se falando, exclusivamente, das instituições e agentes que compõem o núcleo do sistema de crédito (bancos, fundos de investimento, etc), em que pese o papel central desses agentes na formulação do conceito. A noção de financeirização, que ganhou maior atenção nas ciências sociais nos últimos anos, repousa sobre uma compreensão de que as finanças encontram-se cada vez mais associadas com uma vasta gama de atividades econômicas e sociais que ultrapassam a esfera financeira strictu sensu, e de que sua intrusão em todos os interstícios da sociedade reflete uma situação peculiar do capitalismo nos últimos vinte a trinta anos. Mais do que isso, a hiperextensão das finanças nos últimos anos teria suscitado o florescimento de uma lógica financeira geral, que agora permeia rodas as atividades capitalistas e mesmo a reprodução da força de trabalho. Diferentes trabalhos, ao longo dos últimos anos, vêm tentando explorar e especificar os sentidos da financeirização para além de uma noção, presente em algumas correntes heterodoxas da economia, de uma dominaçáo do setor financeiro ou dos bancos sobre a economia produtiva, ou de uma hegemonia de agentes financeiros sobre o capital industrial, perspectiva que tende, muitas vezes, a negligenciar a complexidade do fenômeno.

José Carlos Braga foi talvez um dos primeiros a tratar o problema dessa forma mais abrangente. Em artigo escrito na década de 1990, o autor afirma que a financeirização representa um

padrão sistêmico porque (...) está constituída por componentes fundamentais da organização capitalista, entrelaçados de maneira a estabelecer uma dinâmica estrutural segundo princípios de uma lógica financeira geral. Neste sentido, ela não decorre apenas da práxis de segmentos ou setores--o capital bancário, os correntistas tradicionais--mas, ao contrário, tem marcado as estratégias de todos os agentes privados relevantes, condicionado a operação das finanças e dispêndios públicos, modificado a dinâmica macroeconômica. Enfim, tem sido intrínseca ao sistema tal como ele está atualmente configurado (Braga, 1997, p. 196).

A formulação de Braga foi, portanto, inovadora no sentido de ampliar a noção de financeirização para além do reconhecimento de uma supremacia de um setor sobre outros. Ao longo da década de 2000, após o estouro da bolha de ações nos Estados Unidos e em meio à percepção de que uma bolha de ativos imobiliários estava substituindo a bolha de ações para fomentar o crescimento do consumo na maior potência econômica do mundo, um número crescente de pesquisadores passou a considerar mais seriamente a ideia de financeirização, sobretudo no mundo anglo-saxão. Embora muitos deles tenham retido uma noção eminentemente keynesiana de uma supremacia do setor financeiro que estaria entravando a acumulação produtiva, muitos outros procuraram atentar para novas práticas sociais que têm, por fundamento, a onipresença de uma "lógica financeira geral", usando os termos de Braga.

Assim, por...

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