As condicoes para a diversidade urbana de Jacobs: um teste em tres cidades brasileiras. - Vol. 47 Núm. 140, Enero 2021 - EURE-Revista Latinoamericana de Estudios Urbanos Regionales - Libros y Revistas - VLEX 863515220

As condicoes para a diversidade urbana de Jacobs: um teste em tres cidades brasileiras.

AutorSaboya, Renato
CargoTexto en portugu

Introducao

Espero que todos os leitores deste livro comparem constante e ceticamente o que digo com seu proprio conhecimento acerca das cidades e de seu funcionamento. Caso haja imprecisoes nas observacoes ou erros nas inferencias e conclusoes a que cheguei, espero que tais falhas sejam rapidamente retificadas.

(Jacobs, 2009, p. 16).

Morte e Vida das Grandes Cidades (Jacobs, 2009) foi publicado um ano apos a inauguracao de Brasilia, marco da arquitetura e do urbanismo Modernista, e e, sem duvida, seu trabalho mais conhecido e influente. Teceu profundas criticas ao urbanismo modernista e expressou ideias divergentes da pratica e teoria urbanas entao vigentes, ideias essas que, hoje, sao amplamente aceitas (Netto, 2016). Arquitetos como Jan Gehl (2013) reafirmam seu legado, propagando e perpetuando suas ideias sobre as caracteristicas de vizinhancas bem-sucedidas, a necessidade de diversidade de usos e a importancia de olhos na rua.

No entanto, como a propria Jacobs recomenda, suas ideias precisam ser constantemente testadas e desafiadas. Nesse sentido, sao poucos os estudos que buscam validar ou refutar empiricamente suas proposicoes. Marshall (2012) nota que, apesar de dois desses estudos terem sido publicados ainda na decada de 1970 (Schmidt, 1977; Weicher, 1973) e seus resultados nao terem sido muito animadores, a imensa maioria dos trabalhos que revisaram a obra de Jacobs reafirmam suas ideias sem mencionar a existencia de evidencias que as suportem ou contradigam. A propria ideia da importancia da diversidade de usos para a seguranca e a vitalidade urbanas, cuidadosamente construida por Jacobs e amplamente difundida por urbanistas no mundo inteiro desde entao (ver, por exemplo, Alexander, Ishikawa, & Silverstein, 1977; e Gehl, 2013), tem encontrado resultados contraditorios. Se, por um lado, ha ampla evidencia de que ela esteja efetivamente associada a vitalidade urbana e ao movimento de pedestres (Cervero & Kockelman, 1997; Netto, Vargas, & Saboya, 2012; Saboya, Netto, & Vargas, 2015; Sung, Lee, & Cheon, 2015), por outro tambem tem sido consistentemente associada a ocorrencia de crimes (Greenberg & Rohe, 1984; Stucky & Ottensmann, 2009), inclusive no Brasil (Monteiro & Cavalcanti, 2017; Saboya, Banki, & Santana, 2016). Alem disso, a operacionalizacao da medida de diversidade empregada nesses trabalhos tambem representa uma limitacao importante, conforme explicaremos mais adiante.

Diante desse quadro, este artigo tem o objetivo de investigar a relacao entre a ocorrencia de crimes, utilizada como proxy de bairros mal-sucedidos, como fez Jacobs (2009), e as condicoes para a diversidade urbana defendidas por ela: diversidade de usos do solo, tamanho medio das quadras e densidade populacional. (1) O estudo empirico foi realizado para as tres cidades catarinenses mais populosas --Blumenau, Florianopolis (2) e Joinville--utilizando a base de setores censitarios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica (IBGE, 2010b) e o registro de ocorrencias criminais do Ministerio Publico de Santa Catarina (MPSC). Para reforcar a validade e a representatividade dos resultados alcancados, as seguintes providencias foram tomadas: a) testamos as realidades de tres conjuntos urbanos com caracteristicas distintas, totalizando 1.650.883 pessoas; (3) b) usamos informacoes oficiais e relativas a contagens do universo (e nao a amostras); c) adotamos uma unidade territorial relativamente desagregada, considerando a abrangencia total do estudo, o que possibilitou boa discriminacao dos resultados; d) utilizamos distintas medidas para a diversidade, com o intuito de obter uma descricao mais completa do fenomeno; e e) empregamos analises estatisticas para estimar a intensidade das relacoes estudadas.

As condicoes para a diversidade urbana: delineamento original e evidencias empiricas

A visao de Jacobs (2009) sobre um espaco urbano bem-sucedido baseia-se em dois pilares principais, intimamente relacionados: o primeiro e a riqueza de experiencias e estimulos proporcionados ao vivenciar a cidade, resultado de "espacos publicos vivos e bem utilizados" (p. 153) nos quais pessoas de diferentes perfis encontram-se e interagem, ainda que de maneira transitoria e nao profunda ou intima; o segundo e a seguranca desses espacos, que seria tanto uma consequencia da intensa utilizacao quanto um incentivo para ela. Segundo ela, a seguranca "E mantida fundamentalmente pela rede intricada, quase inconsciente, de controles e padroes de comportamento espontaneos presentes em meio ao proprio povo e por ele aplicados" (Jacobs, 2009, p. 32), o que chamou de "olhos da rua". Essa rede seria uma consequencia do uso intenso do espaco publico por pessoas diferentes em diferentes horarios, o que, por sua vez, dependeria de quatro condicoes fisico-espaciais que comporiam o que chamou de diversidade urbana e que, segundo ela, seriam indispensaveis para que as pessoas fossem estimuladas a andar nas ruas e criassem, espontaneamente, essa rede de controle informal: usos principais combinados, quadras curtas, predios antigos e concentracao de pessoas.

  1. O distrito, e sem duvida o maior numero possivel de segmentos que o compoem, deve atender a mais de uma funcao principal; de preferencia, a mais de duas. Essas devem garantir a presenca de pessoas que saiam de casa em horarios diferentes e estejam nos lugares por motivos diferentes, mas que sejam capazes de utilizar boa parte da infraestrutura.

  2. A maioria das quadras deve ser curta; ou seja, as ruas e as oportunidades de virar esquinas devem ser frequentes.

  3. O distrito deve ter uma combinacao com idades e estados de conservacao variados, e incluir boa porcentagem de predios antigos.

  4. O distrito precisa ter uma concentracao suficientemente alta de pessoas, sejam quais forem seus propositos. Isso inclui pessoas cujo proposito e morar la (Jacobs, 2009, p. 165).

Diante dos argumentos de Jacobs (2009), alguns trabalhos tem sido desenvolvidos no sentido de testar suas hipoteses empiricamente, ainda que nao tenham sido numerosos. Na decada seguinte a publicacao do livro, Weicher (1973) chegou a traduzir o conjunto de afirmacoes de Jacobs para a linguagem matematica e aplicou a formula para Chicago, considerando apenas a area urbana. Os resultados foram pouco significativos e deram pouco suporte aos argumentos de Jacobs, apontando, entre outros resultados, que a diversidade de uso do solo parece ter efeito negativo no sucesso da cidade (definido como baixas taxas de crime, doencas e mortes).

Na mesma direcao, Schmidt (1977) testou empiricamente o pensamento de Jacobs para a cidade de Denver. Os resultados tambem nao contribuiram para validar os argumentos da autora. Ao contrario, mostraram que, assim como observado em Chicago, a diversidade de usos principais teve pouca influencia nas variaveis utilizadas para mensurar o sucesso das areas urbanas: diversidade de renda, estabilidade da populacao (percentual da populacao que mudou de residencia no periodo de 1965-1970), crime, doencas e lotes vazios. Schmidt (1977) aponta para a importancia de considerar o desempenho da area urbana ao longo do tempo, uma vez que o sucesso ou o fracasso sao produtos de processos economicos, sociais e politicos, o que poderia vir a dar maior suporte as ideias de Jacobs.

Mais recentemente, Sung, Lee e Cheon (2015) fizeram teste empirico semelhante para a vitalidade urbana de Seul. A partir das consideracoes sobre a importancia do movimento de pedestres para a vitalidade urbana, o estudo buscou examinar como esse movimento, em comparacao com o automovel, pode ser influenciado pelo ambiente construido. Os resultados mostraram que, apesar de algumas variaveis nao terem sido significativas para a vitalidade urbana, os argumentos de Jacobs se mostraram, na maioria das vezes, validos. Apesar de a diversidade do uso do solo ter tido pouco impacto no movimento de pedestres, a proximidade a edificios comerciais ou a equipamentos publicos, como estacoes ferroviarias, apresentou efeito positivo. Quanto ao tamanho das quadras, os resultados confirmaram que distancias mais curtas de um edificio ate uma esquina aumentam a probabilidade de caminhada. A densidade populacional nao se mostrou significativa, ao contrario da densidade de empregos, que mostrou relacao direta com o movimento de pedestres. Dessa forma, o teste empirico para Seul apresentou resultados mais favoraveis as ideias de Jacobs, ainda que nao tenha verificado relacao direta com todas as variaveis analisadas.

No Brasil, algumas pesquisas empiricas tem sido realizadas visando validar ou refutar alguns dos pontos defendidos por Jacobs. Netto, Vargas e Saboya (2012) mostraram que a diversidade de atividades que acontecem no pavimento terreo esta diretamente relacionada ao movimento de pedestres e a presenca de grupos estaticos no Rio de Janeiro. Saboya, Netto e Vargas (2015) investigaram essa influencia na cidade de Florianopolis, verificando uma relacao inversa entre usos residenciais e o movimento de pedestres e, ao contrario, relacao direta entre a diversidade de usos e o movimento de pedestres. Os resultados encontrados para as duas cidades quanto a diversidade de atividades dao suporte parcial ao sistema explicativo de Jacobs.

Vivan e Saboya (2017) investigaram a distribuicao da ocorrencia de crimes e a possivel relacao com fatores de visibilidade entre edificacao e espaco publico em Florianopolis, essenciais para que os olhos da rua efetivamente funcionem. Entre as variaveis consideradas pelo estudo, a diversidade de usos do solo nao apresentou relacao positiva com a seguranca, enquanto areas comerciais apresentaram maior incidencia de crimes.

Barause e Saboya (2018) encontraram um efeito criminogenico moderado da presenca de usos comerciais em trechos urbanos. Entretanto, seus resultados indicam tambem que, quando esses usos estao inseridos em edificacoes com usos residenciais, configurando edificacoes mistas, esse efeito nao era estatisticamente significativo.

Uma...

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